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PEQUENOS ADULTOS - Infância vive momento de paradoxo

Nas grandes cidades, "crianças-rei" dominam agendas familiares e se tornam o centro das atenções; ao mesmo tempo, seus direitos são pouco reconhecidos

Arquivo pessoal
Cibele Noronha de Carvalho, pesquisadora da infância
Nas propagandas televisivas, nos outdoors, nas redes sociais e na extensa programação dos shopping centers, elas reinam absolutas neste mês em que se comemora o Dia das Crianças. Mas, para além do apelo comercial que ronda a data, qual o espaço ocupado pela infância na vida das pessoas? A pesquisadora de infância Cibele Noronha de Carvalho, doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), considera que há muitas formas de ser criança. "Ao perguntar o espaço que disponibilizamos às crianças dos grandes centros urbanos, por exemplo, podemos dizer que o lugar delas atualmente é o do paradoxo", diz.

Denominadas por alguns teóricos como "crianças-rei", elas dominam agendas familiares que giram em torno dos compromissos infantis e, segundo Cibele, participam ativamente de decisões de compra de toda a família. Nascidas em tempo de planejamento familiar, são geralmente muito esperadas e, conforme vão crescendo, há o desejo dos pais de que o processo de socialização delas seja norteado pela autonomia.

Apesar de tanta valorização, a pesquisadora lembra, por outro lado, que as crianças não são muito ouvidas. "É como se não tivessem o que dizer", critica, lembrando que os direitos da população nesta faixa etária ainda são pouco reconhecidos.

Para ela, ao mesmo tempo que compartilhamos a crença em uma educação para a autonomia, paradoxalmente, deixamos de reconhecer a criança como criança quando nos deparamos com a autonomia dela. "É bastante frequente que adultos se incomodem com crianças que expressam sua opinião, que busquem realizar pequenas tarefas sozinhas, mesmo sendo esse o nosso modelo de educação."

O que é ser autônomo?

A ideia de autonomia precisa ser melhor discutida, porque, a rigor, ninguém é autônomo, ou seja, ninguém cria suas próprias regras ou escolhe seu próprio nome. Mas esse valor educativo, que às vezes utilizamos muito cegamente, expressa, muitas vezes, o nosso incômodo com o fato de que precisamos do outro porque somos um ser social. Seria mais preciso falarmos de uma autonomia relativa. Por um lado, é comum percebermos um certo exagero na proteção às crianças, sobretudo das camadas médias. Riscos como a obesidade, os "traumas", a violência e as epidemias vêm sendo alardeados e, consequentemente, cresce a opção por se viver em condomínios fechados, e somem dos desenhos animados e das histórias os conflitos. Por outro lado, as crianças estão ainda muito desprotegidas da propaganda direcionada a elas e dos riscos vindos do acesso à internet que é tão difícil de ser mediado.

Alguns adultos parecem valorizar demais atividades pedagógicas, cursos,

certificados como garantia de sucesso para os filhos... Mas não ensinam as crianças a fazerem sozinhas atividades do dia a dia e inclusive a brincar sozinhas. Quais as consequências desta prática?

Sim, nesse processo, educar para a autonomia se tornou educar para o empreendedorismo. A utilização desse jargão diz muito. Além disso, tratar a educação dos filhos com tanto profissionalismo é desconhecer a especificidade da infância e a importância de brincar nessa fase da vida. Inúmeros autores e correntes teóricas se dedicaram a compreender a importância do brincar para a elaboração de conceitos e emoções. E não só as crianças estão cada vez mais pedagogizadas, o mercado tem ainda oferecido cursos pras mães. Isso faz parte do que tínhamos falado de um superinvestimento, sobretudo material e educativo que as famílias têm feito nas crianças, mas que muitas vezes se resume a um certo planejamento escolar e profissional, desconsiderando as relações e o brincar como forma da criança se apropriar do mundo. As crianças estão sendo tratadas como pequenos adultos.

Com relação aos espaços públicos, eles parecem não pertencer mais à infância. Concorda com a afirmação? De que forma "devolvê-los" às crianças em uma realidade em que as pessoas têm muito medo da violência?

Concordo sim. Sobraram às crianças os espaços especificamente planejados pra elas. Parques e praças infantis cercados e decorados com as cores primárias que acreditamos ser do gosto infantil, por exemplo. As crianças não circulam mais pelas ruas. Atualmente, têm surgido alguns estudos sobre os deslocamentos das crianças. Alguns, sobretudo fora do Brasil, mostram que vem progressivamente diminuindo o raio de circulação das crianças de classe média desacompanhadas e à pé por causa da violência urbana e do trânsito. Por sua vez, os estudos brasileiros têm se dedicado principalmente a mostrar que, considerados os trajetos em diversos meios de transporte, o raio de deslocamento das crianças de classe média é maior do que o das crianças das classes mais populares. Esses resultados acusam que as nossas desigualdades são também espaciais. Buscando uma reapropriação do espaço público, alguns grupos sensíveis a essa questão têm proposto piqueniques coletivos, pequenos campeonatos de carrinho de rolimã ou carnavais de rua. As redes sociais têm facilitado a divulgação desses eventos. Além disso, há algumas pequenas iniciativas muito interessantes como o Pedibus, uma prática conhecida na Europa e nos Estados Unidos, mas rara aqui no Brasil. Trata-se de uma versão pedestre do transporte escolar coletivo em que um grupo de pais se reveza para levar as crianças à pé para a escola.

Por outro lado, entre as camadas mais pobres, muitas vezes as crianças são "jogadas" nos espaços públicos sem qualquer tutela, o que acaba gerando situações de risco...

Sim, é interessante notar que quando explicitamos as ideias mais dominantes do que é infância, como a ideia de que a rua não é lugar de criança, percebemos que não são dadas às crianças mais pobres ou em situação de risco condições para atender essas expectativas. São crianças que vivenciam situações usualmente consideradas adultas. Colocadas à margem de nossa representação social de infância, passo seguinte é que recebam um tratamento de adulto. Daí o projeto, a meu ver absurdo, de diminuição da maioridade penal. É preciso que estejamos todos engajados para mudar essa realidade social tão perversa. Em um mês que comporta o Dia das Crianças e as eleições, fica o convite para que cada um procure saber quais ideias de espaço público e de infância cada candidato apresenta.

Por que seria importante viver os espaços públicos?

O espaço público nos propicia experiências de cidadania e coletividade. Nele, a criança experimenta regras que não são domésticas, familiares ou privadas. Se há segurança para que a criança faça pequenos deslocamentos sozinha, ela pode fazer escolhas e, por isso, desenvolver o autocontrole. Além disso, os deslocamentos à pé fazem bem pra saúde e reduzem os impactos ambientais do carro. Acredito que as crianças estão desaprendendo a fazer escolhas e arcar com algumas pequenas consequências, a vivenciar um espaço coletivo, a cuidar e se responsabilizar pelo patrimônio público. Mas penso também que os adultos andam desaprendendo a conviver com as crianças, na mesma medida em que elas estão cada vez mais deseducadas a conviver fora dos espaços especializados. Crescem os espaços de criança, mas crescem também os estabelecimentos chamados "no-children". É bastante estranho porque não podemos dizer: nesse hotel não entram velhos ou, nesse restaurante não entram mulheres, mas é possível dizer "não aceitamos crianças". O que mostra que as crianças ainda não têm o seu estatuto de cidadãs suficientemente garantido. À margem do espaço público e do exercício da cidadania, elas estão mesmo à margem das cidades.
Carolina Avansini
Reportagem Local-folha de londrina
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